quinta-feira, junho 17, 2010

Ana

É o nevoeiro, sabes.
E eu aqui fechado em casa
à espera que chegues todos os dias
sem saber se tu chegas todos os dias
à espera da chave na porta e tu a entrares
tu que vens de lá de fora todos os dias, do trabalho
vens do nevoeiro, do escuro, nem sei como
da chuva, de toda esta chuva que se ouve
E se
não sei
se tu não entrares
se tu um dia, imagina
um dia eu aqui à espera, aqui dentro
os barulhos lá fora
e tu não
e nunca mais.
Se desapareceres
se tu um dia
depois como é
como é que vai ser
o que é que eu posso
o que é que eu devo
o que é que eu faço se um dia tu não entrares?
É nisso que eu penso.
E as pessoas lá fora
Está alguém lá fora que passa o dia lá fora
alguém que quer falar contigo mas não te encontra
mas quando te encontrar
o que é que vai acontecer
o que é que vai acontecer quando te encontrar?
E eu aqui
e só quando entras é que eu
só quando te tenho aqui ao pé de mim
aí sentada
só então é que posso descansar.
Desculpa.
Tens razão, desculpa.
é só o nevoeiro, é só a noite, é só isso.
Estou cansado. Cansado de estar aqui dentro fechado
todos os dias
de não conseguir trabalhar
e de estar à tua espera todos os dias.
Devia sair
talvez se eu saísse
nem que fosse descer só à rua.
Se não tivesse tanto medo de me perder
se tivesse um sítio para onde
porque é muito difícil sair quando não tenho nenhum sítio
para onde ir
quando não tenho nada lá fora
não se vê nada
não se vê ninguém
e esta impressão.
Não sei.

José Maria Vieira Mendes

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